Heroicídio: a busca pelo poder

O que você está prestes a presenciar é um homicídio. Matarei cruelmente um herói. E, ao fazer isso, serei um vilão.

Na minha juventude um personagem ficou marcado em minha memória. Seu nome é Demolidor, o homem sem medo.

O Demolidor é um personagem de história em quadrinhos (HQ) publicado pela Marvel. O personagem foi criado por Stan Lee, Bill Everett e Jack Kirby em 1964. O personagem chama a atenção não pelos seus superpoderes, mas pela sua deficiência visual. Um acidente radioativo deixou o personagem cego, mas drasticamente aumentou todos seus outros sentidos em um nível sobrenatural. Durante o dia ele é o advogado Matt Murdock e a noite torna-se o vigilante Demolidor. O personagem é conduzido pela sede de justiça, alimentado pelo desejo de vingar a morte de seu pai, um boxeador com a carreira em declínio que trabalhava para uma organização criminosa no bairro de Hell´s Kitchen na cidade de Nova York.

O Demolidor é um ser mitológico guiado pela ética, moral e altruísmo na busca pela verdade e justiça, valores base do pensamento filosófico grego. O enredo é pobre, mas podemos encontrar grandes dilemas da humanidade.

O dilema do Demolidor é a justiça. Ele é a personificação da Justiça. E como a Justiça, ele é cego.

A mensagem trazida pelo personagem é perturbadora.

Aparentemente o Demolidor significa que nossas limitações não precisam retardar nossos passos e que todos nós temos forças ocultas com as quais podemos contar quando as circunstâncias forem particularmente desafiadoras. Essa é a aparência.

Na realidade o personagem busca o poder, valor tipicamente perseguido por vilões.

O personagem é impelido pelo poder de aplicar a sua Justiça, seja ela qual for. Sem provas, sem julgamentos, sem contraditório, sem ampla defesa, sem advogado, sem testemunhas, enfim, sem qualquer mecanismo legitimado pelo ordenamento jurídico.

O que legitima a sua Justiça é o seu livre convencimento balizado pelos seus quatro supersentidos. O Demolidor não tem a capacidade de fazer a Justiça, ele é o fim em si mesmo. Na verdade o Demolidor é a personificação do exercício de um Poder. Nada mais do que isso.

É importante lembrar que sua origem está ligada a criminalidade. Seu pai era um criminoso. No entanto, para o personagem, egoisticamente e apesar de todas as provas, seu pai era uma boa pessoa.

Nasce do crime uma nova legitimidade, uma nova Justiça, chamada Demolidor. E essa Justiça combaterá exatamente o mesmo tipo de pessoa que justificou sua criação, legitimou e legitima todos os seus atos.

O Demolidor é uma máscara para o exercício do Poder, e como tal é única, imutável e eterna;

O Demolidor merece morrer... [pausa]

BANG! BANG! BANG!

[o Demolidor caí em câmera lenta, em tomadas curtas e sucessivas, registrando o momento e a exata localização da área de penetração das três balas. Fusão encadeada. As órbitas de seus olhos deixaram de existir. A última bala atingiu sua cabeça, apagando toda sua memória, pondo fim a sua existência.]

[A câmera se afasta e gira. Um leve sorriso de satisfação. Afasta-se para captar uma tomada geral. Música. O autor deste texto derruba a arma. A música aumenta. É um novo começo... é a JUSTIÇA prevalecendo sobre a vilania. Agora as ruas estarão mais seguras. Nasce um herói representando a única e verdadeira Justiça! Um novo Demolidor.]